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Tio Lucas

        Ele me deixou no início da Paulista, ao lado do Belas Artes. Já estava acostumada a ficar sozinha. Tio Lucas recebera um chamado urgente, de um cliente antigo, fiel, não podia fazê-lo esperar. Pedi que me deixasse, fizesse a corrida, depois voltasse para me apanhar.
        Era uma quinta-feira. Eu estava em São Paulo para o casamento da prima Adelaide. Na sexta.
        O tempo estava encoberto, um pouco frio, mas, na esquina da Paulista com a Consolação, qualquer luz tem sabor de futuro. De solução. Um poeta me disse que a Paulista, vista da Consolação, margeada pelos edifícios, faz-se uma vulva aberta para céu, uma vagina parideira de promessas. Uma fotografia indispensável a quem tem o hábito de sonhar.
        Tio Lucas estava separado da Madalena havia apenas dois meses. Ele me contou que nos últimos anos conversavam pouco e sorriam menos.
        Disse-me de Madalena e se calou. Como se o fato de me falar o levasse a rever seus desacertos no casamento. Alguns assuntos escolhemos para pensar. Outros tomam conta de nós e deles não conseguimos fugir. São mais fortes. Ficamos absortos, alheados, abstraídos, com o olhar vago. O cérebro se vê tão ocupado que nos abandona.
        No calçamento do canteiro central da avenida, um corpo de modelo passou exibindo toda a sua graça, seu jeito espetacular de caminhar, de se ter como se fosse uma obra-prima de anjos artesãos. Virei-me para o canteiro, empurrei as rodas até o meio-fio. Eu e mais uma centena de vítimas olhávamos para uma mulher que devia tudo a Deus. Pernas, joelhos, quadril, peitos, nariz, cabelos perfeitos.
        Eu nos via vítimas de acidentes genéticos, antropológicos, culturais, climáticos e, no meu caso, automobilístico. Quando percebi, uma lágrima já estava pronta.
        Deus nos trata como se fôssemos um. Que eu seja feliz com a felicidade dela. Que o seu prazer de ver tudo possível seja meu. Que outra razão teria Deus para dar tudo a uns e tirar tanto de outros? Prefiro acreditar que Deus não tira, apenas dá. Mas não pode – ou ainda não pôde – dar tudo a todos. Provavelmente também sofra minha falta de felicidade. Talvez perceba seus próprios limites nos meus.
        Difícil imaginar que Deus sofra. Mas é menos fácil entender que podia e não quis evitar que eu perdesse minhas pernas. Só porque alguém mostrou os olhos pro céu, estava feliz, no volante, contra o vento, quando trouxe os olhos pra esquina, eu já estava no chão. O tamanho das consequências não me parece proporcional à causa.
        Quando retomei o controle dos meus pensamentos, já se havia passado uma hora. Lembrei-me de que gostaria de ver um filme. Comprei um jornal para ler a respeito das estreias.
        Um senhor me perguntou se eu queria ajuda para atravessar a Bela Cintra. Fiz que não e agradeci.
        Tio Lucas encostou o carro antes da banca, pegou-me nos braços, pôs-me no banco traseiro. Disse-me que vira Madalena com um namorado, no aeroporto. Permaneceu alguns instantes em silêncio, apoiando-se no carro, olhando para o chão. Depois, voltou para guardar minha cadeira no porta-malas.
        Um ônibus fez o vento que levou algumas folhas do meu jornal para a avenida. Tio Lucas correu atrás das folhas, abaixou-se para apanhá-las. Um para-choque bateu contra a sua cabeça. Que bateu contra o para-choque do táxi. Ouvi as pancadas. Barulhos graves e breves. Vazios.

Expulso do paraíso

        Guaíra, 1950. Casinho passou creme nas mãos e as mãos pelos cabelos pretos, lisos, de cinema. Glória morava no fim da rua. Tinha olhos verdes e pele amarela. Ele andou duas quadras e a encontrou no portão. Cumprimentaram-se. Sorriram-se. Excitaram-se com seus perfumes. O sol já se tinha posto. Ela o convidou para entrar. Sentaram-se nas cadeiras da cozinha. O pai de Glória entrou logo em seguida. Os dois esperavam pelo café que a menina fazia. Capitão Zé Custódio tirou o chapéu, esperou um silêncio e sentenciou:
        - Vocês não podem se casar.
        Glória se descuidou, caiu água quente na mão. Soltou a caneca, mas não gritou. Casinho tirou os olhos para o lado, para a porta da cozinha, como se alguém virasse seu rosto bruscamente com as duas mãos. Ficou olhando para um galho de sabugueiro, no quintal, procurando nada, sentindo sua alma escorrer. A menina pegou a caneca do chão. Ficou quieta no quarto, pressionando o crucifixo de um terço contra os lábios, pondo-se a se acostumar com o que tem de ser. Zé Custódio argumentou para quem o pudesse ouvir.
        - Vocês são primos. Casinho é filho de primos. Isso não pode dar certo.
        Dona Maria Carolina, mãe da Glória, chegou da reza. Casinho não percebeu. Tinha sido tragado pelo galho do sabugueiro. Seus olhos sumiam entre as folhas e formigas. Ele recebia a sentença do Zé Custódio como um tiro engatilhado que podia não ter sido disparado. Vivia da esperança de que a pólvora envelhecesse. Um tiro anunciado e seco. Duro. Inflexível.
        Casinho não se levantou para trabalhar. Não tinha um mundo sem Glória. Dona Vevinha ficou sabendo da decisão do Zé Custódio. Preparou um café forte e amargo para o filho. Ele precisava reagir. Mas o rapaz só se levantou para almoçar. Depois se deitou no banco da varanda do fundo e lá permaneceu durante horas. Seu Romário esbravejou. Dona Vevinha rezou. Antenor, o irmão mais velho, falou, falou, falou. Casinho ficou olhando para o teto, para lugar nenhum. Quando o deixaram sozinho já era noite. Seus olhos se inundaram. Transbordaram. A mãe o abençoou, disse boa noite, deixou a porta da cozinha encostada.
        Zé Custódio casou sua filha com um rapaz de Barrinha. Um afilhado de batismo. Casinho nunca mais falou. Quando visitava tia Ana, enfileirava três cadeiras na cozinha e nelas ficava deitado até resolver que devia voltar para casa.
        Dona Maria Carolina e Dona Vevinha eram irmãs. Zé Custódio e Dona Maria Carolina eram primos. Por isso, Casinho e Glória se apaixonaram. Porque eram primos filho de primos, entenderam que nasceram marcados. Com o destino pronto. Com a felicidade encomendada. Dona Maria Carolina, no entanto, sonhou com filhos incompletos, delirantes, incomunicáveis. Acordou apavorada no meio da noite. Contou para o Zé Custódio. Ele, então, resolveu que sua filha não se casaria com o primo.
        Casinho envelheceu deitado. Na casa do pai, do irmão, da avó, da Tia Ana, chegava e se deitava. Permanecia estirado dias inteiros, em silêncio, olhando telhas, ninhos, o fim do céu. Desatinado. Expulso.

Tocou a campainha

        – Está triste?
        – Estou vivendo um dia reflexivo.
        – Acidentalmente?
        – É cíclico. O inverno me inspira e normalmente deixo.
        – Tem uma pauta especial? Ou pensa no que aparece primeiro?
        – Estou pensando no amor.
        – Uau! Clássico! Está gostando de alguém?
        – Não. Mas estou pensando nisso. Talvez me permita uma paixão no próximo verão.
        – É assim? Você tem o controle dos seus sentimentos?
        – Quero nunca perder esse controle.
        Desde os primeiros dias da adolescência, Elisa aprendera a se recusar aos sentimentos. Acumulava motivos para não se apaixonar. Escola, trabalho, projetos, a mãe, bandeiras: “uma mulher só consegue ser livre sozinha”; “quem se deixa levar pelos sentimentos perde o controle de sua história”; “os sentimentos animalizam o sujeito”.
        Amigos, muitos. Dificilmente dizia não a uma festa ou viagem. Alguns desses amigos tentavam ir além de uma amizade, mas Elisa estava sempre atenta: “Só vou me envolver com um homem quando estiver convicta de que não vou pertencer a ele”.
        Matheus percebeu que Elisa não era feia nem ingênua. Outros eram ansiosos; Matheus não. Sthendal lhe dissera que uma mulher se apaixona quando há admiração e esperança. Matheus se esforçaria pela primeira e daria a segunda.
        Eles se conheceram há apenas semanas. Alguns velhos amigos se reuniram para dançar. Trouxeram alguns convidados. Elisa e Matheus dançaram como partners.
        – Algumas ações nós as temos como impossíveis talvez porque nunca as vimos como possíveis. Nunca pensei que pudesse controlar meus sentimentos. Estou gostando de alguém como se isso fosse inevitável, mas provavelmente estou gostando porque queria mesmo gostar de alguém. E estou gostando de gostar. A vida parece que ganha mais sentido. Dormir, acordar, comer, beber, estudar, trabalhar, tudo passa a ter mais força.
        – Nossa! É tão bom assim gostar de alguém?
        – Não sei. Estou vendo isso acontecer comigo. Não sei se é assim com todo mundo. Talvez, se a minha vida já tivesse toda a significação que espero dela; se não precisasse de mais motivos para acordar, comer, estudar, trabalhar; talvez não precisasse do amor para sentir essa disposição.
        Matheus, quando pensa em Elisa, tem a mesma sensação de um caçador que está com uma caça admirável na alça de mira, um alvo possível, a caça que ele sempre quis, uma oportunidade rara, talvez única, não pode perdê-la. Parece que nesse limite está a paixão. No instante em que o futuro despenca no presente. Em que o sonho se enfia na realidade.
        Um sujeito conhece alguém, mas consegue abrir mão desse alguém para esperar outro mais interessante, porque está certo de que encontrará várias pessoas mais interessantes. Quando esse sujeito, no entanto, encontra alguém do qual não consegue abaixar a mira, porque não vê perspectivas de encontrar alguém melhor, então a paixão aparece, a busca termina. A pessoa ideal, do futuro, está aqui, agora. Todos os sentimentos se voltam para ela. Sem ela, não há futuro, não há presente, não há felicidade.
        Elisa se despediu de Matheus no portão. O rapaz disse: quinta-feira, eu volto. Às três e meia, está bem? A moça concordou: está bem, quinta, às três e meia.
        À noite, o telefone tocou. Alguém disse que o rapaz morrera num acidente. Elisa não conseguiu falar, se mover. Quando alguém se aproximou, ela chorou. A casa ficou sabendo da notícia e a deixou em paz.
        Isso aconteceu numa segunda-feira. Na quinta, às três e meia, tocou a campainha. Elisa saltou da cama. Ficou sentada, apavorada, ofegante.
        – Não era ele. Matheus está vivo. Meu Deus! Quem me ligou? Não sei. Não perguntei quem era. Entendi que era a empregada da casa dele. A voz parecia. Disse Matheus. Só ela falava comigo no telefone. Só ela sabia que ele vinha aqui.
        Tocou a campainha novamente. Ela olhou para o relógio do telefone. Quinze e trinta.
        – E se ele morreu... e está aqui? Isso é possível? Como vou saber se isso é possível?
        Algumas palavras escaparam desesperadamente: “Alguém atende a porta”. Meu Deus! Não tem ninguém em casa. E se ele estiver na porta? Como vou saber se está vivo?
        A campainha tocou, terceira vez, longamente. Elisa se levantou da cama, aterrorizada, fria, as mãos coladas em frente à boca.
        – Eu consigo? Eu vou conseguir. Que tenho a perder? O mundo fácil com que me acostumei? Tudo pode ser menos simples. Cadê a coragem?
        Tocou a campainha, quarta vez, impacientemente. A moça se viu assustada, começou a andar.
        – A campainha não vai tocar o dia inteiro.
        Mas a casa era grande.
        – Agora entendo o que é neurose. Qualquer das minhas verdades não me satisfaz. Estou perdendo o chão, a firmeza, as referências. Sinto-me oscilando entre possibilidades que descartei há anos e outras que jamais considerei. Estou apaixonada por um fantasma? Não é mais paixão isso que eu sinto. Matheus já não me interessa.
        Elisa chegou ao portão sem vontade, como se alguém a obrigasse com uma arma nas costas. Ninguém na rua. Quase vazia. Um cachorro a observava do outro lado, na calçada.
        – Como pode ser ninguém? Eu preciso de alguém no portão. Eu preciso dessa verdade. Ele desistiu? Foi embora? Quantas vezes tocou a campainha? Por que não me telefonou? Estava sem telefone?
        Percebeu os olhos do cão que a observava. Gritou e correu assustada para dentro de casa.
        – Não quero. Não me interessa. Não vou telefonar. Eu tenho medo.

A festa

         O garçom me trouxe um refrigerante. Encostou-me o copo na mão, disse fudeu! e jogou seu corpo contra o meu. Só ouvi o estalo de um litro de uísque se espatifando. Bateu contra a parede a um palmo da minha orelha.
         – É o dono da casa. Está bêbado. Sem beber, já não é certo. Vem comigo.
         Josué me puxou pelo braço. Sete, oito metros.
         – Senta aqui.
         Arrumou-me a camisa. O cabelo.
         – Não sai daqui. Já volto.
        Meu irmão me deixou no banheiro. Dos homens. Falavam de mulher. Da mulher do dono da casa. Um garoto disse É uma vagabunda! Um cara que estava com o nariz escorrendo não conseguia acertar o vaso. Molhou a calça.
         – Bosta! Merda! Caralho! Como eu vou sair daqui?
         Passou papel higiênico molhado na mancha de urina.
         – Põe uísque que sai o cheiro.
         – Boa! Boa! Boa!
         Bateu no meu ombro e saiu. Entrou uma mulher. Uma menina.
         – Você é o irmão do garçom, não é? Do Josué?
         – Que aconteceu?
         – Vai acontecer agora.
         Ela me beijou. Sentou-se nas minhas pernas. De cavalinho. O cara do nariz escorrendo diria Boa! Boa! Boa! Mas a menina era pesada. Fiquei colado à parede, com as mãos para o alto. Tinha bastante carne nos lábios. Perfume demais. Despejou-se sobre mim, num último ataque e se levantou.
         – Gostoso!
         Apertou minhas bochechas e saiu, alisando o vestido.
         – Hoje você não me escapa.
         Não me lembrava de em algum dia ter escapado dela. Vai ver estava falando de qualquer um. Dos homens que a descartaram nos últimos dias ou meses. Ou anos.
         Beijar ficou tão fácil. Mais gente à disposição. Gratuitamente. Melhor para os mais bonitos. O que já era fácil, agora é sem compromisso. Pior para os mais feios. O que já era difícil, agora está perto do impossível. A classe média do padrão de beleza só quer saber de filé. Se ficou mais fácil beijar as beldades, quem quer saber dos feios? Nem os feios.
         Josué voltou.
         – Tudo bem? Quem estava aqui?
         Uma gorda. De vestido curto.
         – É a filha do Nicolau. O dono da casa. Que ela queria?
         – Beijar.
         – Beijou?
         – É louca!
         Já ia saindo, rindo.
         – Vai me deixar aqui?
         – O nome dela é Flávia. Inofensiva. Vai cuidar bem de você. Não é gostosa? Lá fora o tempo ainda está quente.
         Bosta! Merda! Caralho! Preso no banheiro. Isso é festa?
         A gorda enfiou a mão e me puxou.
         – Vem comigo.
         Na sala das poltronas, três ou quatro homens absorviam a fúria do Nicolau.
         – Não tem sentido. Está com ciúme do seu sobrinho?
         – Ela não presta. Não vale o vestido que usa.
         – É sua mulher, Nicolau.
         – Minha mulher, o caralho! Ela é de quem estiver no jeito.
         – Não fala isso, rapaz. Amanhã é outro dia.
         Flávia fechou a porta do quarto e me empurrou, de costas, até me derrubar na cama. Caí de braços abertos. Ela não teve dó. Pulou pra cima de mim como seu eu fosse parte do colchão. Senti o impacto de um saco de cimento arremessado contra o meu estômago. Quando flutuou, depois da queda, joguei a doida para o lado.
         – Você é louca?
         – Não está gostando?
         – De ser atropelado por um ônibus?
         Ela se levantou, puxou-me pela gola e me deu um soco no nariz. Um soco com ódio demais.
         – Ônibus é a sua mãe, filho da puta!
         Percebi que me dera as costas e saía. Estou trabalhando e esperando pelo dia em que serei um exemplo de paz. Por enquanto ainda não dá. O ideal está muito distante do real. Tirei-me da cama e me joguei sobre a doida. Batemos os dois contra a porta. Pior para a testa dela. Só não passei a noite na cadeia porque sou deficiente visual.

A ressurreição de Josias

       Josias plantava, cuidava, colhia, guardava e comia. Semeava um tanto além do que consumia, a fim de trocar as sobras, no povoado, por agasalhos, sal e açúcar. Dinheiro, não lhe interessava. Nem conhecia. Gostava de brincar com as crianças, batendo com pau em bola de meia.
       Na lida, cansado, aprumava o corpo no cabo da enxada, firmava os olhos no horizonte e não via o tamanho do seu mundo. Como cair de uma ribanceira e nunca chegar ao fundo. Essa alegoria lhe vinha, nos sonhos, e o fazia sentir-se imensurável, merecedor de tantas graças divinas.
       Em trinta anos de lavoura, estendeu um hectare de plantio a cada filho. De oito, vingaram seis. Quase não mudou a paisagem. Nos hectares dos dois perdidos, havia cruzes garantindo a memória. De Manuel e Virgília.
       A vida não lhe impunha fronteiras e, se as fazia, era de sua casa às bordas do seu mundo, no estender da plantação. Também não lhe trazia homens de lei a quem respeitar. Quando, de mês em mês, caminhava dois dias e meio contra o sol até o vale dos quilombos, com três mulas carregadas e o filho mais velho, gastava somente o tempo de se desfazer das cargas e ajeitar as trocas. Dizia ao menino que não era bom olhar aos lados, nem se distrair com as mercadorias da venda. Josias só levantava os olhos com segurança quando estava chegando ou na volta, se olhava para trás.
       Num fim de tarde, diante de uma promessa de chuva, com os antebraços cruzados sobre o cabo do rastelo, avistou coisa que não era mato nem criação. Raspou o suor das sobrancelhas, abandonou o serviço e foi, incomodado pela estranheza. Pediu a Deus, na aflição, que não fosse o que só podia ser. Pois era uma cerca.
       O lavrador foi arrancado de sua alegria. Sabia muito bem o que era uma cerca e o que lhe dizia. Seu filho, o mais velho, chamou e o chamado lhe pareceu, como nunca, impertinente. Estava longe, distante mesmo, a cerca. É que o pai tinha a vista boa. E tinha chegado ao fundo da ribanceira.
       Andou muito com a ferramenta no ombro até alcançá-la. Os fios de arame novo nas lascas de aroeira velha apertaram o peito de Josias. Quem pensou que morreria sem ter ódio ou crime a se explicar com Deus já tinha a sua amargura. Contra ninguém, se ainda não sabia a quem culpar. Porém, o seu contentamento já não era sem fim. Agora tinha um motivo para frear o riso.
       Deu as costas para a cerca e viu a sua casa de pau-a-pique e sapé. O seu mundo passou a ter um tamanho e a sua vista o alcançava. Recolocou o rastelo no ombro e voltou. Na metade do caminho, topou com o filho. Passou como se não o visse. O menino respeitou o silêncio e só o seguiu até a dispensa, assustado com o aspecto desconhecido do pai.
       Naquela noite não se contaram histórias. Josias jantou e se deitou. Dona Josefa quis saber se tinha dor. O marido se virou para o outro lado. Não saberia dizer o que de certo lhe acontecia. Era um homem do mato e o que pôde fazer foi roubar a órfã Zefinha do pai bêbado. Mais que isso não podia, nem queria. Pegou a mulher e se afastou até não saber de mais ninguém. Sabia ser selvagem e se envolver nas aventuras de narrar aos filhos e sempre sorrir com o prazer de estar protegido pela solidão.
       Viu o clarão do sol e se lembrou da cerca. Uma tristeza profunda o atingiu. Acabou o sentimento de ser livre sem nunca ter imposto a sua liberdade. Os feixes de luz pelas frestas do sapé reconstruíam a sua amargura, o seu ódio por ser desafiado. Sempre quiseram o que era seu e agora sabia que não morreria em paz. Não havia mais para onde se afastar.
       Já se viam cercas em todos os lados. A última lhe pareceu mais perto e ameaçadora. À noite, tiros. Podiam ser ecos da memória, coisas da imaginação. Pela manhã, um corpo de homem escravo no pé da porteira. Josias e o filho Firmino enterraram o morto ao lado de Manuel. Rezaram quanto souberam e o cobriram com pedras em cruz para marcar o lugar.
       Homem que se recusa ao confronto, se não vê outra saída, morre de angústia. O corpo mesmo se pune por não se dispor contra o inimigo.
       As noites na cama se tornaram mais longas. Josias comia em silêncio e se deitava. Não reparou que os filhos não estavam todos à mesa. A mãe carregou um animal com mantimentos e mandou os três mais crescidos para a casa de sua irmã, no vale.
       A mulher reclamou do mato. Para limpar os pés de feijão, o lavrador pegou a enxada no ombro, abaixou a cabeça e foi. Não andou um terço do que sempre andava e se deparou com os fios de arame novo. Bateu com a ferramenta na lasca de aroeira velha até soltar-se a enxada e quebrar-se o cabo.
       Josias não tinha a quem reclamar ou pedir ajuda. Dos filhos que lhe restaram, a mais moça tinha doze anos e essa história não lhe era nova. Perdeu, nessa idade, pai e mãe contra os grileiros.
       - Fica na cidade, meu filho.
       - Não sei o que lá se faz e nem tenho jeito de aprender.
       Ficou na cama, despertado. Estava certo de que as cercas estariam mais próximas. Os hectares de Manuel e Virgília já não eram seus. Ficou na cama.
       Uma vaca mugiu na porta da cozinha. Dona Josefa pegou uma segunda mula, as crianças, comida e água, disse adeus. Josias não tinha certeza se isso era um fato ou alucinação. Nessa vez, subia a ribanceira pelas encostas.
       A última mula enfiou a cabeça no quarto, procurando alguém. Pôs seu olhar agigantado nas pálpebras magras de Josias e rinchou, sem parar, até não poder mais. O homem saltou da cama destituído de qualquer satisfação. Teria de começar tudo outra vez, se quisesse alguma alegria. E se, afastar, não podia, o jeito era demarcar as suas fronteiras.
       Encheu uma carriola de ferramentas e agarrou o serviço. Puxava os pregos e enrolava o arame. Arrancava as lascas e as empilhava na caçamba. No quarto dia, surgiu da mata um cavaleiro.
       - Tem ordem de quem?
       - De ninguém, não, senhor.
       - Pois deixe a cerca onde está.
       - Onde está, não posso deixar. Está me incomodando demais.
       O cavaleiro desmontou com uma espingarda na mão. Engatilhou a arma e se aproximou de Josias.
       - Não tem medo da morte?
       - Ela não tem o que tirar de mim. A não ser a vida que nada me vale sem o que já foi tirado.          
       - É melhor assim. Não vou ter muito que pagar pela vida de um homem que não queria viver. Pois comece a rezar.
       O lavrador entendeu que tinha o direito de se defender. Os pássaros têm os seus ninhos, mas os filhos de Deus não têm onde encostar a cabeça. Quem quer justiça que se ponha a fazer.
       Puxou pelo cabo e arremessou o punho do enxadão contra a testa do invasor. Antes, um tiro saiu da espingarda. Josias não soube explicar sua sorte. Nem se ocupou com tal capricho. Matou também o cavalo e enterrou os dois na mata, com os apetrechos e os arreios. A quem perguntasse, contaria histórias de assombração em terras abençoadas. Agora tinha uma espingarda e a convicção de que a defesa da própria vida é um direito sagrado.

Dez libras esterlinas

O capítulo que falta a Dom Casmurro

        Traí para não me acovardar. Tudo que existia dentro de mim queria ser mãe. Todos os meus sentimentos, órgãos e músculos estavam dispostos e não fariam outra coisa se não fosse um filho. Nos meus dias férteis, achava-me quente, quase febril, sovada pelo desejo e indisfarçadamente agastada com a infecundidade do homem que havia escolhido para ser o pai das minhas crianças.
        Quais? Três anos de casamento e procedimentos inúteis. Todos os meses eu sofria e a cada vez a angústia era maior, porque o desejo crescia, mas a aproximação de Bentinho era sempre mais insuportável. Meu corpo me dizia, insistentemente, que o meu marido não podia aliviar a minha agonia.
        Era um homem gentil e disposto a tudo que me fizesse bem. Eu o amava tanto que juntos nada me faltava, contudo, com a negação do tempo, a mim, Bentinho se diminuía a um amigo e a sua amizade começou a me entristecer. O meu desejo já não o aguardava, não o queria por perto. Outros homens me chamavam a atenção, faziam-me especular situações além do mundo de nós dois e eu me chorava toda quando passei a invejar as mulheres mães. Mesmo o velho da barbearia aparecia viril nos meus pesadelos, derrubando portas e me oferecendo filhos.
        Quando algumas pessoas têm o privilégio de algo que sempre foi destinado a poucos, a maioria culpa o destino pela privação e se conforma com algumas compensações, porém, se, ao contrário, a maioria tem a sorte que só alguns não conseguem ter, a dor desses alguns é lancinante, pois não há compensações que deem jeito. É como não contar com os materiais indispensáveis para terminar o que se começou, é ser alijado até mesmo da mediocridade, dos prazeres mais simples e das oportunidades mais comuns.
        Em verdade, eu me sentia traída pelas circunstâncias, porque a maternidade me era mais importante que o matrimônio, a propósito, casei-me para ter filhos, não o fiz para viver um grande amor. Bentinho era o menos vaidoso e egoísta dos meus candidatos e seria o criado para que eu fosse uma boa mãe, contudo só vi que a represa estava seca depois que saltei da plataforma e Sancha não me deixava esquecer a arapuca em que me tinha metido. Pôs meu nome em sua menina e falava-me dela como se exibisse as qualidades do marido. Dos olhões azuis e da disposição para o que lhe interessava. Escobar era unanimemente um homem forte e vistoso, aliás, conseguiu não morrer pelos deslizes atribuídos a seus olhos claros, mas se deixou levar pelo excesso de confiança em seus músculos.
        Aos domingos, reuníamos à tarde, para o jantar, ou na chácara de Andaraí ou em nossa casa, na Praia da Glória. Na chácara, costumávamos passear pelos pomares à procura de pinhas ou cajus e, então, conversávamos sobre o que ainda restava dos nossos planos de criança. Já não eram muitos. Estávamos casadas, Sancha tinha já a sua filha, alegre e faladeira. Nossos homens tinham lá os seus assuntos profissionais. Eu, o que tinha? Uma vontade enorme de ser não mais que uma fêmea e permitir o gozo de um macho qualquer que me desse o que eu precisava para sair do lugar.
        Eu me sentia imóvel, paralisada pela incapacidade de reproduzir. Para viver o resto da minha vida, eu precisava dos meus filhos. Então, murchava, falava menos, fugia de outros assuntos. Ensimesmava-me com pensamentos egoístas, indulgenciados pelo direito de ser mãe. Especulava, incansavelmente, as mais estranhas possibilidades que outras mulheres, noutras culturas, noutros tempos, menos ou mais machistas, aproveitaram para não se furtarem da obrigação natural de seguir adiante, em seus descendentes.
        Em minhas conjecturas, mulheres recorreram a padres ou pastores para garantirem o segredo e diminuírem a culpa. Outras se afastaram dos seus esposos e se reaproximaram em dois ou três dias, arrependidas e grávidas. Algumas se passaram por sonâmbulas em leitos alheios e não faltaram aquelas que aliciaram primos ou sobrinhos de pouca idade para arrancar deles o que lhes faltava para a maternidade.
        Não me passava, contudo, por esses pensamentos, a alternativa em que a incapacidade estivesse comigo. Não a admitia. A natureza não me faria sentir tamanho desejo e angústia sem a condição de satisfazê-los.
        Num dos passeios pelos pomares, ouvimos de Escobar a narrativa de uma transação financeira, por conta da qual teria ido à casa de uma freguesa levar moedas de ouro em troca de libras esterlinas. Eu conhecia a personagem, Dona Maria Trasmontes, da toalete do teatro. Na ocasião, ouvi-a, involuntariamente, confessar a uma amiga a sua admiração pelo comerciante.
        Eu tinha em casa algum dinheiro. O que havia sobrado das despesas domésticas do mês anterior. Resolvi juntar com o quanto faria sobrar no mês em que estávamos e, sem nenhuma preocupação com a originalidade, pedir a Escobar que me trouxesse, em casa, algumas moedas de ouro para trocá-las.
        Tantos fatos, muitos fundamentais, são esquecidos e, na história do mundo, o que eu fizer ou deixar de fazer, que importância terá? Tantos erros são cometidos, perdoados ou não, passam. E se podemos pedir e obter o perdão por nossos pecados, por que não podemos escolher as infrações que mais nos interessam?  
        Somei pouco mais de duas libras com o que guardei em dois meses, mas ainda não estava certa de propor o câmbio a Escobar. Meus argumentos me tinham convencida, inclusive das alegrias que um filho traria a Bentinho, porém, eu precisava de alguns motivos para confiar no desejo e no arrojo do comerciante. Da sua discrição, eu não duvidava. Ele jamais se exporia com tanto a perder: a mulher, a filha e o seu melhor amigo.
        Em quatro meses de economia, consegui acumular seis libras. Não foi uma contenção normal. Várias mercadorias habituais deixaram de ser consumidas – ora uma, ora outra – sem que Bentinho notasse. Alguns vestidos não foram confeccionados: o dinheiro me chegou às mãos, mas me declarei indisposta na ocasião do baile ou do sarau.
        Domingo, à noite, depois do jantar, na casa da Glória, pus-me à janela expondo-me aos ventos que vinham do mar. Bentinho estava no banheiro havia mais de meia hora e Sancha atendia a um pedido da filha brincando na biblioteca. Escobar aproveitou a oportunidade para me dizer que a civilização havia feito do homem um indivíduo reto. As proibições morais, éticas, religiosas, matrimoniais o impediam de explorar as alternativas que o tirariam do caminho já traçado pelas normas sociais.
        Prosseguiu com o seu protesto dizendo-me que os indivíduos são obrigados a abrir mão de muitas das suas possibilidades em prol da harmonia que nos permite conviver. À medida que a população cresce, aumenta também o volume de regras a serem obedecidas. E não pode ser diferente, se a cada dia mais pessoas usam as mesmas fontes de água e alimentação e os serviços públicos. Os indivíduos não podem infringir para não inviabilizarem a sobrevivência do grupo.
        Ouvi o seu discurso sem me mover. Sem desviar os olhos da claridade que fugia das espumas do mar. Estou omitindo alguns trechos, é claro, algumas frases incompletas, outras ratificativas. Ficamos em silêncio dois ou três minutos, como se nada tivesse sido dito. Eu estava esperando pela segunda parte, pelo que ele pretendia com a sua queixa. Permaneci em silêncio porque tinha medo de dizer alguma coisa que o fizesse mudar de assunto.
        Escobar não soube como dizer ou não conseguiu. Mas encontrou desembaraço para pousar suas mãos em meus ombros, voltar-me para si e me beijar, como se fôssemos dois adolescentes vencendo apenas a timidez. O beijo não foi longo. Não tomou um milésimo do tempo em que os nossos olhos se admitiam.
        No sexto mês de economias, consegui juntar dez libras e, na chácara de Andaraí, propus a Escobar o negócio. Ele me escutou calado, acho que tentando compreender a obviedade do meu propósito e ao fim disse-me apenas está bem.
        À tarde de segunda-feira, Escobar me apareceu com as moedas de ouro. Trouxe-me-as novamente, as mesmas moedas, na terça e na quarta fiquei com elas. Revelei a Bentinho, sobre as dez libras, somente quarenta dias após, para evitar a coincidência com a concepção de Ezequiel.
        Sempre que nos encontramos, depois, eu e Escobar nos comportamos como se aquelas tardes das dez libras fizessem parte das nossas histórias em outras vidas. Foram tão eventuais, tão silenciosas, tão sem circunstância ou testemunha que, após anos, pareciam mesmo irreais. Não voltava às moedas para não desfazer essa ilusão.
        Entretanto, ainda antes que Ezequiel começasse a nos lembrar permanentemente seu pai e a me garantir a veracidade daquelas tardes de insurreição, Escobar me interpelou imprudentemente:
        - Você só queria mesmo o filho?
        - Perdoe-me!
        - Ele se parece demais comigo.
        - Consegui ser imprudente duas vezes pelo mesmo fim. Não espero impunidade ou perdão.

O amor, segundo Platão.

         Os humanos, a princípio, eram andróginos: homem e mulher num mesmo corpo. Duas pernas, mais grossas; dois braços, mais fortes; as frentes coladas e o pênis sempre dentro da vagina; um rosto cuidando das costas do outro, como duas pessoas abraçadas.
         A metade macha comia folhas e absorvia o calor do Sol; o lado fêmeo apreendia água e sais minerais. Cada parte metabolizava suas ingestões e produzia seus gametas. Ele ejaculava suas sementes, ela as decompunha com seus líquidos vaginais e os dois dividiam seus bens fisiológicos.
         Cresciam feito árvores, cujo limite está na capacidade do solo. Porque, na época, a terra não estava tão usada e cansada, tinham à disposição tudo de que precisavam e da melhor qualidade. Com uma força invencível e um aspecto aterrador, já eram enormes e se agigantavam.
         Zeus, o deus dos deuses e o criador dos andróginos, começou a se preocupar com o tamanho de suas criaturas. Tomado pela vaidade dos artistas, observou que não havia imposto qualquer obstáculo ao desenvolvimento de suas crias mortais. Poderiam ultrapassá-lo, em sua força, se continuassem crescendo sem alguma dificuldade.
         Geia, a deusa da fertilidade e da fecundidade, aconselhou-o a separá-los. Suas criaturas ganhariam mobilidade, já que não estariam mais juntas duas partes de naturezas opostas, porém, teriam de encontrar uma a outra metade, se quisessem viver como viviam e crescer como cresciam.
         O criador, então, determinou que os andróginos deveriam ser divididos verticalmente ao meio: as metades seriam masculinas ou femininas. Assim, deixariam de crescer obsessivamente, pois teriam de procurar uma pela outra, a fim de garantir a sobrevivência e a geração dos seus filhos. Considerando que a maioria jamais encontraria a sua metade, e aqueles que a encontrassem teriam de se ocupar com artifícios para continuarem próximos – uma vez que havia também interesses incomuns e os indivíduos não podiam ser reemendados – a supremacia de Zeus estaria assegurada.
         Hermafrodito, filho de Hermes e Afrodite, o maior e o mais belo dos andróginos, Zeus cuidou de separar pessoalmente. Os outros foram divididos pelos deuses do Sol e da Água. Separaram-nos como se os desabraçassem, criando dois pares de pernas e braços e desunindo as genitálias.
         Numa das noites mais escuras do mais longo e frio dos invernos, o deus dos deuses lacerou Hermafrodito enquanto o andrógino dormia. A metade feminina, deixou na margem norte do rio que cortava as planícies onde está o mar Mediterrâneo. A outra metade, abandonou na margem sul.
         Quando despertaram, Másculo e Femina sentiram pela primeira vez a falta. Jamais haviam precisado de algo que não tivessem no alcance das mãos. O alimento e a água eram fartos. O Sol e as chuvas nunca os haviam decepcionado. Mas acordaram sem o desejo de beber ou se alimentar. Uma condição precisava ser restabelecida antes que a água e as folhas tivessem alguma importância.
         Femina esforçava-se para sugar o que lhe faltava. Dobrava-se, a fim de proteger o peito, o ventre, a vulva; contraía-se, tentando arrancar de si um bem que lhe desfizesse o mal; contudo nada lhe vinha, senão a certeza de que a falta não era irreal. O frio a maltratava em suas carnes expostas e o alongamento da dor, mais a lentidão do tempo, enfraquecia a ilusão de um pesadelo.
         Se não era um sonho, tinha de tomar o controle dos acontecimentos. No mais óbvio dos seus costumes, quis puxar para a sua frente a cabeça de sua porção macha e lhe perguntar sobre tal destino. Nesse instante, compreendeu os fatos. Estava só. Sem as costas e os humores de Másculo. Viu-se desgraçada em sangue; desesperada, interrogava aos deuses que tal castigo. Não sabia se estava viva ou morta. Onde estaria o seu prazer de estar sempre crescendo?
         Desdobrou-se num golpe, pôs-se em pé, de frente aos ventos e enfrentou a dor. O seu sofrimento atrairia de volta o que lhe faltava e tornariam a viver um para o outro e aos interesses comuns.
         Na margem sul do rio Mediterrâneo, Másculo agonizava. Apertava-se contra a terra ou rolava na lama, fustigado pela ira de ter sido traído pelos deuses. Sentia-se descoberto, escorraçado pelo frio, condenado a uma morte fina e expiativa. Agarrava-se a um amontoado de barro e escondia nele o pênis para diminuir a angústia provocada pela ausência do sexo oposto, quando entendeu o mal que lhe haviam provocado. A consciência de que não tinha Femina o fez urrar ininterruptamente toda a sua aflição. Trocaria a sua existência pela parte que lhe haviam roubado. Vasculharia o mundo e morreria de fome, frio e sede se não a encontrasse a tempo de ser salvo.
         Másculo livrou-se do corpo de terra, amarrou em sua cintura algumas peles a fim de abrigar a genitália e se pôs de volta ao lugar de onde o tiraram ao adormecer. O rio Mediterrâneo não era estreito, suas águas não estavam quentes, nem era raso entre as margens. Teria fracassado se Afrodite, sua mãe, não cuidasse de acalmar as correntes e manter o calor na alma do filho com seu hálito divino. Consumiram-se sete noites e dias de travessia até a margem norte.
         Antes que o cansaço o fizesse cair, custou a crer na imagem que se punha a seus olhos. Milhares de mulheres o observavam das encostas. Algumas assustadas, afastando-se. Outras caminhando ou correndo em sua direção, resolvidas a disputá-lo. E ainda muitas esperando a sorte de ser a metade do homem que surgia das águas.
         Másculo não conseguia saber o que devia fazer. Naquele instante queria qualquer corpo que o livrasse da solidão, mas não podia sobreviver sem Femina. Ela tinha absolutamente tudo de que precisava. Gritou o seu ódio a Zeus, o responsável por sua perdição. Femina seria o seu paraíso, mas, naquele momento, a sua ausência era o seu inferno.
         Não tinha ideia do que tramavam os deuses e, então, tinha medo de se juntar a uma daquelas estranhas e depois, por isso, nunca mais encontrar Femina. Ou pior: encontrá-la e não poder mais se ver livre para se unir a ela.
         Uma das mulheres o abraçou, tentou amoldar-se em seu corpo. Não pode evitar, estava esgotado. Sua dor diminuiu, sim, mas não se foi completamente. Não podia ser como antes. Muito ainda lhe faltava e se sentia amaldiçoado com o que não podia ter. Femina lhe interessava mais que a própria vida.
         Devagar, restabelecendo-se, afastou-se do rio, das margens, das mulheres, entrou na floresta. Imiscuía-se por castanheiras com oitenta ou cento e vinte metros de altura. Seu andar desfazia a friagem da travessia, recuperava na convicção a sua força e acelerava os passos. Não sabia para onde ia, mas tinha um rumo para o qual os seus batimentos se aceleravam.
         Numa clareira, uma salina, algumas pedras. Dois olhos de mulher voltados para o lugar de onde vinha, como se tivessem sido avisados de sua chegada. Ele correu para ela tão forte que a carregou léguas depois do impacto. Reconheceram-se em beijos, salivas, hálitos, densidades. Seu pênis a penetrou como um filhote se aninha ao colo da mãe.
         Femina e Másculo não puderam ser como antes, porém descobriram uma alegria melhor, pois estavam livres para cuidar das necessidades individuais e, quando se juntavam, viam-se mais fortes e ansiosos pela satisfação dos interesses comuns. Jamais se distanciaram sem que um soubesse do outro.
         Tiveram filhos-metades, os quais, ao crescerem, sentiam a falta da outra parte e se punham a procurá-la. Alguns a encontravam, outros se decepcionavam. Muitos se esforçavam para se sentirem satisfeitos com as coincidências. A maioria se rendia aos rigores da solidão e se juntava à pessoa que mais se aproximava de sua metade ideal. Não conheciam o amor, mas construíam muitos sentimentos bons como a amizade e a afeição.
         Mas os filhos que não desistiam de sua metade e conquistavam a generosidade de Afrodite, esses conseguiam o melhor sentimento que os deuses podiam lhes oferecer: o prazer absoluto de ser inteiro e sempre melhor. A cada dia, mais perto do infinito.

O geófago

        Sr. Nicolau tinha um filho e uma horta. Sua esposa o abandonara quando o menino completava nove anos. Alfredo, agora, estava com vinte e oito. Não fazia amigos nem conhecia uma mulher. Havia cinco anos que lia e relia o mesmo livro: Os fundamentos da moral.
        O rapaz sentou-se no chão, cansado, diante de um pé de alface. Pensava se devia ou não colher a verdura.
        Dada a convicção do pai, tornara-se um vegetariano. Aliás, era mais que um vegetariano: não matava uma mosca. Quando trabalhava na horta, com ferramentas, tomava cuidado para não machucar as minhocas.
        Nesse dia, porém, veio-lhe a seguinte dúvida: se os vegetais são seres vivos, quando arranco um pé de alface, estou interrompendo uma vida.
        Foi o bastante para que Alfredo ficasse horas diante da hortaliça procurando um argumento convincente para arrancá-la do chão. Imaginava a alface morrendo, murchando, agonizando por falta de nutrientes.
        Ficou dois dias sem comer. Tomava água, apenas. No terceiro, o pai o levou a um médico. Foi examinado incansavelmente, no consultório e no laboratório, e nada. Alfredo não apresentava qualquer alteração física. O médico, então, recomendou um psicólogo para descobrir o que se passava na cabeça do rapaz.
        Na clínica do psicanalista, Alfredo entrava e saía mudo.
        Sr. Nicolau não acompanhava o filho ao psicólogo. Alfredo já é um homem!
        O filho já estava no sexto dia em jejum quando resolveu comer terra, mas isso era um problema dele com o psicólogo. Que podia fazer um horteleiro analfabeto – que só sabia contar centavos e alguns reais – num caso tão incomum? Enquanto Alfredo comia terra e atendia as determinações do psicólogo, Sr. Nicolau cuidava da horta e da freguesia, que não era pequena.
        O pai viu o filho colocar duas colheres de terra num copo com água, mexer e beber. O horteleiro rude e analfabeto ficou estupefato.
        – Foi o doutor psicólogo que mandou você beber água com terra?
        – Não, senhor.
        – Graças a Deus!
        Alfredo pegou outra colher de terra, enfiou na boca e saiu mastigando. Sr. Nicolau não se conteve:
        – O doutor psicólogo sabe que você come terra?
        – Não, senhor.
        – Ele precisa saber, meu filho.
        No nono dia em que jejuava e no terceiro em que comia terra, o rapaz perdeu a cor. E forças. São olheiras medonhas!
        Uma tia disse ao Sr. Nicolau que Alfredo estava possuído pelo demônio. Destino de quem não reza. Conhecia o caso de um rapaz que morrera com o intestino entupido de areia.
        Durante a noite, várias vezes o filho acordava sobressaltado. Tinha pesadelos. Um policial alertou: pode ser coisa de traficantes. O moço pode estar sendo usado como laboratório.
        Na sexta sessão com o psicanalista, Alfredo tomou a iniciativa de enunciar uma frase.
        – Estou me alimentando.
        – Eis uma boa notícia! O que está comendo?
        – Terra.
        – Terra!?
        – A mesma terra que alimenta as verduras do meu pai.
        – Por quê?
        – Assim minha vida não se alimenta de outras.
        – Há quanto tempo está pensando nisto?
        – Dez dias.
        – De onde tirou essa ideia?
        – Vi uma rúcula morrendo.
        – Uma rúcula?
        – Sim. Uma rúcula. Fiquei observando a sua morte. Resistiu durante quarenta e duas horas. Na quadragésima terceira não consegui observar qualquer esforço. Deixou-se cair completamente sobre a mesa. Imaginei a sua dor, enquanto secava. E também a sua angústia de não ter recursos para lutar. Não é certo que uma vida se alimente de outras. A não ser que uma vida seja superior a outra. Qual? A mais forte? Isso corrompe o caráter do ser humano.
        – Comer terra salva o caráter do homem?
        – Eu acredito nisto. Todas as vidas devem ser preservadas e respeitadas.
        – Você vai morrer se continuar comendo terra.
        – Muitos morreram antes que o homem se acostumasse a comer carne.
        O psicanalista pediu um tempo para pensar. Dois dias. Alfredo voltou no terceiro. Havia um vaso com terra, uma jarra com água e um copo à sua frente.
        – Estive com o seu pai.
        – Eu sei.
        – Você tem vindo aqui porque ele manda?
        O rapaz começou a chorar. Em silêncio.
        – Está com medo?
        – Gostaria que o senhor me convencesse de que estou enganado.
        – Está me dizendo que sua vida depende de mim?
        – Eu sei que não é justo.
        O psicanalista levantou-se alterado, batendo na mesa.
        – É claro que não é justo. Se nunca me apareceu alguém com tal problema, ou semelhante, como eu podia estar preparado?
        – Desculpe! Não quis responsabilizá-lo.
        – Nem tente. Você se convenceu. O que posso fazer é ajudá-lo. Ajudá-lo. A desistir dessa ideia.
        O psicanalista tomou um copo d’água. Buscou outro copo.
        – Quero vê-lo tomando água com terra.
        Alfredo encheu um copo água, adicionou uma colher da terra que estava no vaso e bebeu. Sem nenhuma alteração na face.
        – Tem sentido dores?
        – No estômago, nos rins.
        E se você também tomasse leite? É um alimento que não morre. Seu vizinho tem algumas vacas. Você mesmo poderia ordenhá-las.
        – O leite da vaca é do bezerro. O leite da cabra é do cabrito. Meu leite eu já tomei.
        – Ovos. Poderia criar algumas galinhas. Você as trataria bem e em troca receberia os ovos. Você as alimentaria e elas o alimentariam. Não é um bom negócio?
        – Um bom negócio, é. Mas não é certo. Eu estaria abortando o nascimento de galos e galinhas.
        – Também não poderia ser um frutívoro porque estaria impedindo o nascimento de árvores? Mas você pode comer o fruto e plantar as sementes... Pássaros comem frutas, desprezam sementes e colaboram na formação de matas e florestas...
        – Os pássaros não têm consciência. Respeitam apenas a própria vida. Noutros tempos, escravizamos, não tínhamos consciência do valor de outra vida que não fosse a nossa. Conhecemos antropófagos que não sabiam diferenciar um homem europeu de uma capivara. Outros que se alimentavam espiritualmente dos inimigos. Mas a consciência tem seu preço. Se não existe uma vida mais importante que outra, uma não pode tomar outra como alimento. Nem parte. Se você não é capaz de comer a perna de um defunto, por que comeria uma fruta caída? No Gênesis, Deus disse a Adão: porque tu comeste da árvore, da qual eu tinha ordenado que não comesses, a terra será maldita por sua causa; tirarás dela o sustento com trabalhos penosos todos os dias da tua vida. Ela te produzirá espinhos e tu comerás a erva da terra. Comerás o pão com o suor do teu rosto, até que voltes à terra, de que foste tomado; porque tu és pó, e em pó te hás de tornar.
        O psicanalista pediu mais alguns dias para pensar. Alfredo, contudo, não voltou. Morreu no quinquagésimo dia em que comia terra.

O mal do século

        Havia uma rua deserta, depois da janela. Uma rua sem asfalto nem calçadas. De árvores e porteiras, às margens. Parecia uma estrada de outras épocas, de terra e pedras, e as minhas esperanças se refugiando num passado de silêncios e satisfações. Dos sentimentos imemoriais, das planícies invencíveis e fartas, veio-me um sentimento bom, de não estar abandonada pela história num tempo intratável que não nos permite alegrias.
        Eu esperava o homem que me tinha feito sonhar e, sem demora, Mateus me apareceu no fim da rua. Percebeu-me à janela e me acenou com o quepe. Sorríamos e não podíamos não sorrir. Fatos da minha imaginação aconteciam por si mesmos, fora de mim. Não havia algo a temer ou deixar pra depois.
        Nunca amei tanto quanto naquele instante! Tudo estava absolutamente certo e quieto. Como se o mundo e todas as coisas existissem apenas para justificar o nosso encanto. Como se eu fosse a princesa de uma fábula que estava sendo contada por Deus.
        Ele me abraçou, disse que me amava e me beijou, cuidadosamente, respirando o calor dos nossos lábios.
        Nos livros, eu lia sobre a força da convicção e a crueldade da intransigência, a respeito dos episódios de intolerância e maldade, porém não percebia que a certeza de onisciência nos torna, contrariamente, mais estúpidos e destruidores que os mais agressivos dos animais. Porque eu não interferia nos mecanismos da violência e me mantinha na ingenuidade de que, assim, me deixariam sempre em paz para lidar com as minhas fantasias.
        Quando Mateus me apareceu na rua deserta, eu estava alheia a todos os medos, de costas a qualquer dúvida que me quisesse atormentar. Eu estava certa de que as nossas vidas não interessavam a ninguém e, portanto, estávamos livres para não pensar em mais nada. Seríamos leais à natureza e aos nossos filhos, aos nossos desejos e fim.
        No entanto, no momento em que seus lábios tocaram os meus, o cumprimento da promessa me fez duvidar obstinadamente do horror que eu via e não podia ainda sentir.
 
        Mateus me apareceu fardado, na rua de terra e pedras. Estava servindo ao Exército e esta era a sua primeira folga. Faltava mesmo a saudade para inquietar meu desejo, que já se sobrepunha aos meus escrúpulos provincianos. A camisa meio fora da calça, nunca o tinha visto de cabelos curtos, corria de braços abertos, tombando aos lados feito um planador. Eu tinha pressa, chorava os dejetos da ansiedade, não podia esperar, saí andando correndo aos portões.
        Lembro-me do tiro. Um barulho de brincadeira, um estampido de pau na lata. Não podia nos fazer mal. Mateus segurou forte o meu rosto. Ele sabia o que tinha acontecido. Sem olhar para trás, ele sabia. Esforçou-se para ignorar a morte e me beijar como tínhamos nos prometido. Enquanto o seu corpo caía, por trás da perplexidade, o meu amor multiplicava a dor.
        Foi tudo tão irreal dentro do meu mundo tão pequeno que eu só pude chorar os fatos dois dias depois.
 
        Apareceu a passos largos, um soldado armado, no fim da rua sem asfalto nem calçadas. Em seguida, outro. O primeiro, completamente absorvido por seus propósitos, levantou a arma, sem diminuir a marcha para não perder a distância, e disparou. O impacto trouxe Mateus até o meu peito, já sem os seus planos. Escorou-se em mim, repôs-se em pé, disse que me amava e me beijou delicadamente. O que dele me tocava tinha o tremor de quem se esforça para não decepcionar.
        Naquele tempo, o mundo era dos poucos que desfrutavam e mantinham o autoritarismo dos privilegiados. E também daqueles que negligenciavam ou ignoravam as suas consequências. Quem tinha alguma urgência contra a miséria que humilhava os muitos morria cedo.
        Pude ver ainda um sorriso. O do primeiro soldado. Orgulhoso do tiro certeiro e crente de que era um mocinho triunfando contra os bandidos.
          
        Nenhuma doença matou mais que as ideologias naquele século. De comunistas e de nazistas, de anticomunistas e fascistas, racistas e nacionalistas, se somarmos os seus crimes, teremos centenas de milhões de pessoas sacrificadas inutilmente.
        As ideologias nunca foram tão pretensiosas. Elas ultrapassaram as fronteiras regionais para tratar do destino da humanidade. Como Hitler, que não se sentiu satisfeito com o controle racial em toda a Alemanha e o quis em todo o planeta.
        Essa pretensão ideológica cresceu com as perspectivas que os séculos anteriores não puderam oferecer. Os resultados tecnológicos da revolução industrial iludiram os idealistas de que os seus devaneios eram possíveis. Como aos soviéticos, que apostaram na propaganda de sucesso comunista no rádio e na televisão para convencer o mundo de que estavam no melhor caminho contra as mesquinharias capitalistas.
 
PS: Estava chovendo. As águas lavavam as pedras e as rolavam adiante. Depois do tiro, do sangue e do frio, do instante vazio, sobrou na boca um gosto de água morna e suja.

Segunda chance

        São Paulo, quinta-feira, às 14 horas. Adalberto estava na plataforma do Metrô República. Iria até a próxima estação, Barra Funda, comprar um cabo para a impressora. Numa das janelas do trem que vinha de Santa Cecília, porém, estava o rosto sério e convicto de Juliana. Adalberto ficou estupefato, acompanhando a imagem na janela, perdendo velocidade. A mulher se levantou para deixar o trem. Adalberto, então, saiu do lugar. Apressou-se até a porta do vagão de onde sairia Juliana. Com licença, desculpe, perdão! Juliana já subia da plataforma por uma escada rolante. Adalberto quis alcançá-la, mas não podia se aproximar. Não, nas dependências do Metrô. Havia obstáculos demais. Uma multidão. Quando pôs os pés na Praça da República, não podia mais vê-la.
         Juliana é a mulher que Adalberto amou. Conheceram-se quando estavam com quinze anos, agora tinham trinta. Adalberto gerenciava as salas de cinema do Shopping Montenegro. Juliana, bem, Adalberto não sabia de Juliana. Ela ficara em Santo Antônio da Última Esperança, uma pequena cidade do norte de Minas Gerais.
         Namoraram e noivaram durante cinco anos e se casariam se Adalberto não tivesse um ciúme exagerado e incontrolável. A menina não podia sair de casa, ter amigos ou estar sentada ao lado de um colega na sala de aula. E Juliana tinha uma personalidade muito forte. Abriria mão de qualquer bem para não se dobrar moralmente. Jamais obedeceria a um marido. Não se importava de ficar só.
         Adalberto voltou para o seu apartamento. Noutra hora compraria o cabo. Tomou um banho, um café, abriu algumas correspondências. Esperava um corretor de seguros. O porteiro anunciou Blanche, uma corretora. Adalberto colocou alguns objetos no lugar apropriado antes de abrir a porta. Olhou pelo visor e, sem pensar, abriu. Blanche era a mulher da janela do Metrô.
         – Seu nome é Blanche mesmo?
         – Blanche. De Almeida Prado. Corretora de Seguros.
         – Você não me conhece? Nunca se chamou Juliana?
         – Não. Nunca. Trabalho há oito anos para a Albuquerque Seguros.
         A circunstância era risível, mas a moça não relaxou.
         – Posso entrar?
         – Claro. Entre. Sente-se, por favor.
         Blanche usava saia, mas não cruzou as pernas, brancas, rosadas. Pôs sua pasta no colo e retirou dela alguns papéis.
         – Trouxe-lhe algumas propostas...
         Adalberto ignorou os papéis. Sentou-se de frente para a moça e disse:
         – Você não é obrigada a me escutar. Quando quiser, pode me destratar e sair. De alguma forma você é a mulher que amei e me amou. Outra pessoa no corpo da Juliana, entende?
         – Não.
         – Vocês são iguais.
         – Ninguém é igual...
         Guardando os papéis.
         – ...Talvez sejamos muito semelhantes...
         Adalberto se afastou, na poltrona.
         – Não... Por favor! Fiz alguém para amar. Na minha cabeça. Imaginei uma mulher ideal. Dez anos aperfeiçoando uma imagem. Um jeito de ser. E Juliana me surpreendeu. Terminou aquela mulher pra mim. De repente, na minha frente. Pronta. Fiquei apaixonado. Doente. Mas ela me escapava. Eu queria modificá-la, mas isso não pode ser. Modifica-se um ideal. Não uma mulher.
         – Eu não sou a Juliana.
         – Você é melhor. Você não tem de ser modificada.
         – Não me conhece.
         – Conheço. Você é o que estou vendo.
         – Todos mentem.
         – E daí?
         – O que você quer?
         – Acertar.
         – Consertar?
         – Não. Fazer outra história. Melhor.
         Blanche se levantou para sair.
         – Eu não sou a Juliana.
         – Também não sou mais o Adalberto da Juliana. Às vezes a gente se modifica tanto que se transforma. Imaginei alguém, mas não me preparei. Quero amar você. Conhecer suas limitações e aprender a lidar com elas. Ajudá-la a enfrentá-las. Todo mundo um dia tem que acreditar em alguém. Acredite em mim.
         – Preciso ir.
         – Você volta?
         – Talvez.